[ODE AOS RUMORES]
O rumor, como eu o entendo, é o ruído que usa pantufas. É o barulho com pés algodoados.
[Há sempre um rumor matinal que chama a atenção daquele que escreve. Refiro-me, esteja claro, a rumor, e não ao bate-estaca de alguma obra de engenharia nas redondezas, ou à serra elétrica de algum madrugador sem noção das horas, e, mesmo, ao cantor de óperas do segundo andar, o tal que se põe em Verdis e Rossinis assim que o dia nasce.
Refiro-me a rumor. O rumor, como eu o entendo, é o ruído que usa pantufas. É o barulho com pés algodoados. E esses rumores, volto ao que disse no início, sempre chamam a atenção daquele que escreve.
Os pombos, por exemplo, sempre pontuais às 5h45 da manhã. São dois. Às vezes, três. Quando muito, quatro. Conheço o modo como andam sobre as calhas, posso distinguir os seus arrulhos, e sei quando o bater sedoso de suas asas dá o sinal da partida.
Atesto a existência de uma enciclopédia de rumores matinais que chama a atenção daquele que escreve. Um rádio foi ligado, a voz dessa criança que acordou parece ter as mesmas asas dos pombos que partiram, algo estalou entre a sala e a cozinha, o cachorro coça a orelha, esse lápis que engrossou a ponta.
Não tenho dúvidas: o barulho contamina o dia, os rumores o purificam. O barulho, por exemplo, tem parentela com o mau-humorado das manhãs do mundo, esse que acorda e já tem palavras de faca cega para desferir a torto e a direito.
Pelo contrário, os rumores, consanguíneos dos murmúrios, mantêm vínculo indissociável com o silêncio, e fogem quando é aceso o sinal vermelho das altissonâncias para que o barulho assuma o comando. É o instante separador das águas. Melhor: separador dos sons.
Com a idade, e até que a surdez afinal prepondere em nossas vidas, aprendemos a conhecer e a perceber essa linha divisória na escala dos sons do mundo, dos sons do dia. Ou seja: o que o rumor faz em chamar a atenção daquele que escreve, incorporando-se aos movimentos do lápis sobre o papel, o barulho desfaz com a chegada das hordas de sons metálicos, pontiagudos e triturantes.
E concluo com uma lembrança que agora me ocorre: li em algum lugar, se não me engano na correspondência com Gershom Scholem, que Walter Benjamin sofria de certa psicose do barulho. ]